Considerações gerais sobre a Hemofilia
Em 1989, a Federação Mundial de Hemofilia (FMH) criou o Dia Mundial da Hemofilia, com o intuito de aumentar a conscientização sobre essa doença e sobre outros distúrbios hemorrágicos congênitos. A data 17 de Abril foi escolhida para homenagear Frank Schnabel, fundador da FMH e portador da hemofilia, cujo aniversário ocorre na data em questão.
A hemofilia é uma doença hemorrágica hereditária ligada ao cromossomo X, decorrente de mutações nos genes que codificam o fator VIII (Hemofilia A) ou o fator IX (Hemofilia B) da coagulação, ocasionando uma deficiência ou anormalidade da atividade coagulante dos mesmos2. Por se tratar de uma doença genética recessiva ligada ao cromossomo X, a hemofilia afeta principalmente indivíduos do sexo masculino, cujas mães são portadoras da mutação. Além disso, hemofilia A é mais frequente que a hemofilia B. A primeira representa 80 a 85% dos casos, enquanto que a segunda representa 15 a 20% dos mesmos (Figura 1)³. De acordo com o Ministério da Saúde, aproximadamente 10,5 mil e 2 mil brasileiros são portadores da hemofilia A ou B, respectivamente4.
Figura 1: Tipos de hemofilia. Fonte: Diagno.
O processo de coagulação sanguínea é caracterizado por uma série de reações bioquímicas sequenciais, envolvendo a interação dos fatores de coagulação, plaquetas e íons, e resultando na formação de um coágulo de fibrina. Os fatores VIII e IX desempenham um papel essencial nessa cascata da coagulação e a falha dessas proteínas geram uma diminuição e atraso na geração de trombina, comprometendo a formação de coágulos e promovendo a diátese hemorrágica (Figura 2)5.
Figura 2: Imagem representativa do processo de coagulação em paciente saudável e hemofílico. Fonte: Adaptada de World Federation Hemophilia (2005)6.
As hemofilias do tipo A e B são distúrbios clinicamente indistinguíveis, caracterizadas por sangramentos em músculos esqueléticos, articulações tecidos moles e mucosas7. Pacientes hemofílicos apresentam contagem normal de plaquetas, Tempo de Tromboplastina Parcial ativada (TTPa) prolongado e Tempo de Protrombina (TP) normal. O diagnóstico confirmatório é realizado por meio da dosagem da atividade coagulante do fator VIII ou do fator IX8.
A gravidade e frequência dos episódios hemorrágicos estão relacionadas ao nível residual de atividade do fator de coagulação presente no plasma. Desse modo, ao mensurar tais níveis, é possível classificar a hemofilia em severa, moderada e leve, além de predizer o risco de sangramento espontâneo. Na Tabela 1, são apresentadas as características clínicas de acordo com a gravidade da doença7. Na Tabela 2, são descritos os principais locais de sangramento e suas respectivas frequências em pacientes hemofílicos9.
Tabela 1: Classificação fenotípica da hemofilia e suas características clínicas. Adaptada de Jayandharan e Srivastava (2011)7.
Classificação | Nível do fator de coagulação | Características clínicas |
Severa | < 0,01 UI/mL (< 1% da atividade normal) | Sangramentos espontâneos em músculos, articulações ou em tecidos moles. |
Moderada | 0,01 – 0,05 UI/mL (1 a 5% da atividade normal) | Sangramentos em articulações e músculos, após pequenos traumas ou procedimentos cirúrgicos. |
Leve | > 0,05 a 0,40 UI/mL (5 a 40% da atividade normal) | Sangramentos associados a grandes traumas ou a procedimentos cirúrgicos. |
Tabela 2 – Frequência estimada dos sangramentos na hemofilia. Fonte: Ministério da Saúde (2015)9.
Local do sangramento | Frequência aproximada |
Hemartrose
Mais comum em articulações mono?axiais: joelhos, cotovelos, tornozelos. Menos comum nas articulações tri?axiais: ombros, quadris, punhos. |
70% – 80% |
Hematomas musculares | 10% – 20% |
Outros sangramentos maiores | 5% – 10% |
Hemorragias intracranianas (sistema nervoso central) | < 5% |
O tratamento da hemofilia consiste na reposição do fator de coagulação deficiente (fator VIII ou fator IX). Percebe-se uma evolução no tratamento desta doença ao longo dos anos: as transfusões sanguíneas estão dando lugar aos concentrados de fator de coagulação purificados de plasma humano e aos medicamentos pró-coagulantes recombinantes4.
Além da hemofilia de origem genética, existe também a forma adquirida da doença, resultante da produção de autoanticorpos contra os fatores VIII e IX da coagulação. A hemofilia adquirida é rara e tende a ocorrer em pacientes idosos. O tratamento consiste no gerenciamento hemostático e erradicação dos inibidores10.
Lívia Cristina Ribeiro Teixeira
Mestra em Análises Clínicas e Toxicológicas – UFMG
Analista Científica de Produtos – Diagno
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